Imaginando seu futuro na Medicina
- Daniel Deggerone
- 15 de dez. de 2024
- 8 min de leitura
Digamos que você está entrando na faculdade. Sua mente é uma esponja e está confabulando possíveis trajetórias profissionais, pensando, a todo momento, qual caminho escolher.
Em um mesmo dia, você será exposto a dois cenários distintos:
Cenário número 1
Pela manhã, Roberta se apresenta ao grupo e relata ser médica de família.
Ela chega atrasada e parece estar meio "perdida".
Entra no anfiteatro suada e sem fôlego:
"Estranho", vocês pensam.
Todos olham, desconfiados, enquanto ela tenta, sem sucesso, colocar uma aula que havia preparado para ser projetada: "Meu computador é meio antigo", explica ela.
Ao final, Roberta desiste e tenta apenas falar o que havia preparado.
Ela está nitidamente insegura e acaba esquecendo a maior parte daquilo que pretendia expor.
Mesmo assim, demonstra, de maneira breve, como seria a sua rotina de trabalho.
A profissional esclarece que atua em uma área pobre da periferia onde existe a ameaça constante do tráfico de drogas e todo tipo de situação social de risco.
O saneamento básico é precário.
Quando um aluno finalmente consegue projetar a apresentação, Roberta mostra algumas fotos do posto de saúde onde ela trabalha, sediado em uma casa antiga, bastante humilde, rodeada por "casas" ainda mais humildes.
Os pacientes de Roberta são pessoas de aspecto bastante sofrido.
Roberta usa roupas simples. Todos, naquela sala de aula, julgam que, talvez, uma vestimenta simples demais para uma "médica".
Ao final da aula, você encontra Roberta indo para casa de bicicleta.
De acordo com esta única impressão sobre Roberta e sua área de atuação, o seria possível contemplar sobre o futuro profissional nesta área? Você desejaria isso? Você preferiria evitar um cenário semelhante?
Bem, vamos seguir adiante.
Cenário número 2
Na tarde do mesmo dia, a turma é apresentada ao doutor Jorge, que é cirurgião plástico.
Jorge irradia, por onde passa, muita confiança.
Jorge é articulado, persuasivo e acaba conquistando a turma com o seu charme e simpatia.
Jorge está vestindo um lindo terno azul marinho, perfeito para o seu corpo.
A apresentação preparada por Jorge encanta a turma, mostrando os resultado de algumas de suas cirurgias,
O cirurgião, de maneira inadvertida, mas proposital, deixa escapar a clínica onde trabalha: um consultório maravilhoso, com plantas naturais e uma fonte de água para trazer a sensação de paz e serenidade ao ambiente.
Jorge diz que gosta de praticar yoga e pilates, para manter a sua mente tranquila.
Jorge posta uma fota da sua família em uma celebração natalina, junto com o cachorro da família, um labrador chamado Benji e assegura para a turma de estudantes ali presentes que o seu maior desejo é que eles consigam ser tão felizes quanto ele na medicina, fazendo o que "se ama".
Ao final da aula, vocês encontram Jorge indo para sua casa no seu carro que custa o valor de um apartamento.
De acordo com esta única impressão sobre Jorge e sua área de atuação, o que seria possível contemplar sobre o futuro profissional sendo alguém como ele? Você desejaria isso? Você preferiria evitar um cenário semelhante?
Um dos entretenimentos mentais mais frequentemente realizados por qualquer ser humano é, justamente, divagar a respeito de possíveis cenários futuros.
"E se eu me tornasse como a Roberta?'’
"E se eu fosse como o Jorge?"
Sentimos muito prazer em apenas contemplar nossas vidas na pele de outras pessoas.
Como seriam nossas realidades se nos tornássemos cirurgiões, pediatras e obstetras?
A forma como a mente humana realiza isso é usar o conhecimento que temos hoje e, a partir disso, gerar uma amostra mental inventada.
Sua vida ATUAL
+
Seu conhecimento ATUAL sobre a aquilo que você gostaria de ser
=
IMAGEM DO FUTURO
Aqui surge o grande problema desse funcionamento, que nos traz tanto prazer.
Quando você, um acadêmico de medicina, decide que quer se tornar um cirurgião plástico como o Dr Jorge, o que acontece é o seguinte:
Você, muitos anos ANTES de se tornar um cirurgião plástico
+
Seu conhecimento MUITO PEQUENO sobre a VIDA de um cirurgião plástico, muitos anos antes de poder começar a exercer essa profissão
=
Construção de um DESEJO, baseado naquilo que você sabe HOJE - muito pouco - mais de uma década antes do objetivo poder ser vivenciado
"As pessoas são incapazes de prever o que as fará felizes. Isso ocorre porque tudo o que sabemos é aquilo que conhecemos. Nossa cultura, no entanto, é ótima em "planejar" o futuro, escolher o que nos fará felizes e perseguir essa ideia."
Brianna Wiest, 101 reflexões que vão mudar sua forma de pensar
Agora vamos esclarecer um pouco melhor as coisas, acrescentando informações importantes que você desconhecia completamente sobre Roberta e Jorge
Cenário número 1 DETALHADO
O que vocês, talvez, não ficaram sabendo naquele breve contato com Roberta é que ela, apesar da impressão inicial, se encontra bastante feliz com a sua profissão e com a sua vida em geral, tendo a sensação de que o trabalho que ela executa é muito relevante e recompensador, mesmo com todas as dificuldades que enfrenta diariamente.
Roberta possui uma carga horária que permite a ela conciliar o trabalho e a sua família.
Roberta pode se vestir da forma como achar melhor, não sentindo a necessidade de impressionar seus colegas ou os seus pacientes.
Ela consegue levar e buscar o seu filho, Joaquim, todos os dias na escola.
Como as atividades no seu posto são interrompidas no horário do almoço, Roberta consegue ainda almoçar em casa com o seu marido.
Quando o dia está ensolarado, Roberta pode deixar o carro guardado na garagem e ir trabalhar de bicicleta, pois considera isso algo bastante agradável.
A Secretaria de Saúde do município constatou a relevância do trabalho sendo executado pela profissional para melhorar de forma expressiva a adesão dos pacientes ao tratamento contra a hipertensão e o diabetes, doenças estas que matam milhões de pessoas todos os anos, oferecendo, assim, recursos adicionais para melhorar a infraestrutura da unidade de saúde.
Roberta, ao sair de férias, costuma aproveitar bastante, pois o trabalho não interfere nesses momentos de descanso com a sua família.
Mesmo com um salário modesto, o custo de vida de Roberta é baixo, o que permite a ela e a sua família guardar uma quantia considerável dos seus ganhos para planejar uma aposentadoria em uma idade ainda bastante confortável
Cenário número 2 DETALHADO
O que vocês, talvez, não ficaram sabendo sobre Jorge é que, apesar da impressão inicial, Jorge está profundamente infeliz com a sua vida, apesar do seu sorriso fácil e conquistador.
Jorge está sendo massacrado pela demanda da sua clínica de cirurgia plástica.
Ele tem a sensação que quanto mais se dedica às suas pacientes, mais elas continuam insatisfeitas.
Veste terno e gravata todos os dias por obrigação, sabendo que tem que impressionar os outros com uma imagem de profissional perfeito e superior.
Jorge sonha - escondido - um dia, pode ir trabalhar de bermuda.
Jorge sente que faz cada vez menos aquilo que realmente quer e cada vez mais aquilo que os outros querem que ele faça.
Jorge acorda cedo, trabalha o dia todo e, ao chegar em casa, precisa responder as 200 mensagens que estão aguardando respostas impacientemente no seu telefone, que ainda possui também o registro de quinze chamadas perdidas que ele não estava disposto a atender naquele momento.
O carro maravilhoso que vocês viram Jorge desfilando foi financiado agressivamente, assim como a cobertura onde ele mora.
Uma área que exige perfeição, como a cirurgia plástica, faz Jorge se preocupar muito com as aparências e pensa que ser visto andando com qualquer carro ou morando em qualquer lugar iria gerar um prejuízo para a sua imagem profissional, já que precisa aparentar mais sucesso que os outros coleguinhas.
Dessa forma, mesmo cobrando milhares de reais por cada procedimento executado, Jorge está completamente endividado.
Ainda assim, faz todo o possível para transparecer o contrário.
O perfil social de Jorge é a marca do sucesso, mas este parece ser um sucesso inventado, fabricado, já que existe pouco contentamento em um dia na vida de Jorge.
O cirurgião tem a sensação que o seu trabalho é, por vezes, bastante fútil e desnecessário.
Ele não pratica yoga ou pilates como disse na aula, pois, na maioria dos dias, não tem nem vontade nem de sair da cama.
A família de Jorge deveria estar saindo de férias, mas ele não se encontra muito empolgado, pois sabe que, mesmo em férias, terá que ficar respondendo mensagens e ligações para resolver banalidades e futilidades.
A preocupação essencial de Jorge é tentar agradar e transparecer uma figura invejável e perfeita, sempre!
Mesmo com um ganho financeiro exorbitante, o estilo de vida de Jorge, os custos estratosféricos da sua clínica, as dívidas dos seus carros, do seu apartamento e das viagens escandalosas não permitem a ele guardar nada além de mais dívidas e mais preocupações.
Jorge não tem a menor ideia do que aconteceria com a sua família se algum imprevisto - um acidente ou um problema sério de saúde - ocorresse amanhã.
Jorge aparenta sucesso ao mundo ao seu redor, mas se sente um fracasso na frente do espelho, já que não pode fazer quase nada que realmente deseja fazer.
"Todos estão lutando batalhas que não sabemos nada a respeito"
Timothy Ferris - Tribe of Mentors
Ah, os detalhes.
Malditos detalhes.
E aí? Quais foram os cenários que a sua imaginação construiu no início deste capítulo?
Qual caminho você desejou?
O que cada um pensou a respeito de Roberta e Jorge antes de conhecê-los em detalhes mais íntimos?
Quem vocês gostariam de ser antes e depois?
O objetivo aqui, de forma alguma, é tecer um cenário favorável a uma ou outra especialidade médica.
Roberta e Jorge não existem (eu acho).
São apenas representações de como nossa imaginação cria cenários potencialmente equivocados pela falta de acesso a uma enorme parcela de detalhes que compõem uma realidade.
Construímos nossos desejos e aspirações a partir de uma amostra muitíssimo pequena do que ACHAMOS que sabemos sobre a vidas dos outros.
O estudo "Does Living in California Make People Happy? A Focusing Illusion in Judgments an Life Satisfaction" de David Schkade e Daniel Kahneman evidenciou que a maioria dos norte-americanos, que NÃO moram na Califórnia, acreditam que as pessoas que vivem naquele estado seriam as pessoas mais felizes do país.
Entretanto, as pessoas que, de fato, vivem na Califórnia, não estão nem um pouco mais felizes que aqueles que vivem nos outros estados.
Assim, os norte-americanos, não californianos, imaginam que morar por lá se trata apenas de sol, praia, homens e mulheres bonitas.
A imaginação vai longe, construindo imagens de como seria maravilhoso se aposentar e viver com sol e água fresca.
Agora, para as pessoas que REALMENTE moram na Califórnia, não se trata apenas de sol, praia, homens e mulheres bonitas, mas também de trânsito infernal, custo de vista exorbitante, violência, turismo predatório, afastamento dos filhos, especulação do mercado imobiliário e todo tipo de complicador urbano da vida moderna.
Ao contemplar o futuro, enxergamos alguns poucos detalhes e pensamos que somos capazes de construir uma representação adequada da realidade.
Não possuímos essa capacidade.
Além disso:
Quando temos preferência antecipada por algo, iremos dar mais valor as aspectos positivos e ignorar detalhes menos desejáveis, que, talvez, sejam OS MAIS IMPORTANTES
Quanto mais distante está o cenário imaginado, menos detalhes nossa mente consegue atribuir a ele. Se você está no início da faculdade e deseja se tornar um cirurgião, esta visão evoca sentimentos muito vagos e com ar de "nobreza", como "ser admirado" ou "exercer um trabalho recompensador". Com uma meta tão distante, as nossas mentes não conseguem contemplar os pequenos detalhes que compõem a realidade bruta do cotidiano, como "contratar ou demitir a sua secretária", "perder uma hora do meu dia no telefone para descobrir porque o plano de saúde não pagou nenhum dos procedimentos que eu realizei" ou "acordar às 4:30 da manhã para avaliar pacientes em três hospitais diferentes antes das sete da manhã".
Quando mais distante estiver o seu "sonho"
Menos objetiva será a construção imaginária em torno dele
A "imagem" dele será mais idealizada, abstrata e disforme
Em entrevista à Lex Friedman, Elon Musk, atualmente o homem mais rico do planeta, respondeu da seguinte forma ao questionamento sobre o desejo de outras pessoas em estar no seu lugar:
"Eu não acho que a maioria das pessoas desejaria ser como eu. Elas PENSAM que querem ser como eu, mas não querem. Elas não sabem. Elas não compreendem"
Em outras palavras, muito cuidado com aquilo que você ACHA que deseja para a sua vida. A realidade pode passar MUITO LONGE da sua contemplação inicial, já que esta sabia muito pouco.
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